14 de dezembro de 2010

Tereza de Jesus, mãe de Martinho da Vila

Martinho da Vila escreveu as memórias de sua mãe, Teresa de Jesus.

Na obra, a matriarca, já no outro lado da vida, mas ainda preocupada com parentes e aderentes, narra a saga da família Ferreira desde o ponto mais remoto que sua memória consegue alcançar, para, com isso, mostrar aos seus um caminho, fornecer um exemplo, traçar uma linha que torne mais clara a caminhada de cada um. Um roteiro.

Memórias de Teresa, poderia ser chamada esta obra. Teresa viveu mudanças radicais em sua vida, a partir da infância em Duas Barras, igual à de milhares de teresas negras e pobres do Brasil.

O primeiro rito de passagem foi o momento em que a casa grande da fazenda dos patrões se abriu para acolher o nascimento do único filho homem – predestinação, quem sabe?

– ela que, antes daquele parto e depois dele, só pariu meninas. E no casebre de chão de terra.

Em busca de oportunidades para o filho Martinho, o meieiro Josué Ferreira largou de ser o respeitado “Josué das Letras” e impôs à família o segundo rito: mudaram de Duas Barras para o Rio de Janeiro, cidade que o engoliu e deixou Teresa viúva com cinco filhos para criar.

Finalmente, a terceira e mais brusca das mudanças: com o sucesso do filho, Teresa passou a ser a grande senhora daquelas terras, a matriarca de uma dinastia gerada no seu próprio ventre.

Quanta matéria de análise se depreende desses fatos... e tudo a partir do nascimento do filho de Teresa, Martinho José, gerado com a missão de fazê-la escalar todos os degraus da pirâmide social, da base ao topo, ao seu lado, sempre, consciente ele de que para ficar solidamente de pé, uma árvore não pode se afastar jamais da raiz, sua referência primeira.

Primeira lição: parece que, no Brasil, mobilidade social é possível. Tomara!

Segunda: estimular a auto-estima. Para isso, só carinho de mãe para fornecer aos filhos as informações que a escola e o sistema dissimulam.

Vejam bem: como é que um país co-colonizado por africanos e afro-descendentes não os revela em sua história oficial? Adoniram Barbosa dizia que negro não gostava de ir a museus porque nessas instituições só eram retratados como escravos.

Onde estão os heróis negros, além do mítico Zumbi?

Onde foi a bravura do marinheiro João Cândido?

Onde a erudição do padre José Maurício Nunes Garcia?

E por que o negro Calabar foi chamado de traidor - acaso não podia escolher de que lado ficava, se tanto o holandês quanto o português, invasores, almejavam apenas dominar a terra dele?

Como mostrar a sucessivas gerações de pele cor de chocolate que sua tarefa na construção desta terra foi muito maior do que a de servir ao “senhor” de descendência européia?

Contar que trouxeram de diferentes regiões da África experiências laborativas, espirituais e afetivas para enriquecer o dia-a-dia do solo brasileiro. Que, ao se misturarem com índios e europeus, ajudaram a criar uma civilização multirracial, única no mundo, cuja capacidade criativa está muito além de jogar futebol e fazer samba?!

A terceira lição mostra as conseqüências do “holocausto” africano, pois além de trazê-los à força, dizimando famílias, tribos, nações, os portugueses submetiam-nos a uma verdadeira lavagem cerebral, destruindo-lhes a família, ao separar pais e filhos, irmãos; enterrando deuses, proibindo crenças e substituindo-as por outra, estranha, branca, silenciosa, tão diferente do toque dos atabaques, da dança dos orixás, dos “gungunar” dos pretos-velhos.

Após a abolição, foi preciso apelar para a teoria dos arquétipos e através deles reconquistar a família perdida no navio negreiro ou nas fazendas de cana, ouro ou café. No matriarcado da macumba e do sonho, redescobriram as “tias”, as “mães”, o compadrismo. Paulo Benjamin de Oliveira, fundador da Escola de Samba da Portela, era padrinho das filhas de Antonio Caetano, outro fundador, que batizou a filha do tesoureiro Rufino, que era compadre de Cláudio Bernardo da Costa, o sócio nº 1: assim, os fundadores da Portela viraram uma família só. Quem, no morro da Mangueira, não era sobrinho da Tia Neuma e da Tia Zica, ou neto da Vó Maria Joana Rezadeira do Império Serrano?

Sábia Mãe Tereza...você não queria que seus filhos e netos sentissem dores e carências. Por isso deixou tudo explicadinho: quem ficou em Duas Barras, quem casou com quem, quem foi pra São Paulo, quem descasou, quem ficou famoso, quem morreu.

Teresa fortaleza, que manteve um controle tão grande sobre a própria vida, que no momento que se sentiu pesada, incapaz de movimentar-se sozinha, cedendo ao peso dos anos, deixou de se alimentar e foi ficando leve, muito leve, até flutuar como uma pluma e subir aos céus. E bem no momento em que seu filho querido se encontrava longe, em terras portuguesas, fazendo sucesso. Só para ele sofrer menos!

Mãe Teresa, a tarefa está completa. Você deu a todos a vida. Mas deu, também, uma história. A mais bela de todas, que é a história de cada um. Hoje, a família está mais rica do que antes. Porque, por meio do seu relato seguro e carinhoso, ela se tornou dona do maior de todos os tesouros: o seu passado. A sua história.

Teresa da roça, Teresa incansável, Tereza mulher, mãe, avó, amiga, companheira, Teresa múltipla, Teresa pluma. Agora, você pode descansar em paz, ao lado de Jesus, seu e nosso Senhor.

Você deixou o roteiro. Agora, a gente já sabe como iniciar o resgate!


Marilia Trindade Barboza

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