9 de outubro de 2010

O estranho Miles

Tenho o prazer inenarrável de usufruir da amizade do jornalista e escritor Manto Costa, que pra quem não sabe é também compositor. Depois do sucesso de "Meu Caro Júlio",sobre Julinho da Adelaide", pseudônimo usado pelo Buarque que também é Chico, para driblar os "cérebros de minhoca" da ditadura militar, Manto emplacou um de seus fantásticos contos, na antologia organizada pela jornalista Fernanda Felisberto, "Terra de Palavras", lançada pela Palas Editora e que reúne autores de origem africana. O conto "O Estranho Miles", seguramente é um dos pontos altos da obra, e como ele gira em torno de um ícone do Jazz, decidimos publicá-lo aqui, para que vocês se deleitem com boa leitura. Outro dia bebendo um "suco de cevada", Manto me confidenciou que a primeira "audição" do conto, deu-se em uma pequena reunião na casa do também jornalista J. Carlos(ex JB, atual MEC), lido por ele e ao som de Miles na vitrola, que climão hein! Se você quiser reproduzir o que aconteceu na casa do J., abaixo do conto tem um "sonzinho" do "estranho Miles" para ouvir.




Por Mario Medella


O estranho Miles

Miles estava escondido atrás do balcão do velho armazém, escorado por três gigantescos sacos de farinha de trigo. Se bem me lembro, entrei no lugar para comprar batatas, mas logo descobri que o pardieiro também funcionava como boteco. Eu bebia uma cerveja preta, entre réstias de cebola e salames pendurados, quando percebi a presença dele. Tive vontade de abraçá-lo, brindei ao nosso encontro.

Sua figura chamava a atenção pelo pavilhão do trompete, o qual era possível ver sobre seu ombro esquerdo. O saco de farinha que encimava a pilha estava furado, fazendo uma cavidade. Por ali via-se parte da cabeleira negra do homem emoldurando os imensos óculos escuros. Havia respingos de uma tinta avermelhada; ou, sabe-se lá, jogaram ali um copo de vinho. Amarelado pelo tempo, o retrato em preto-e-branco era sujo e arranhado.

Não pude resistir. Aproveitando-me de um descuido do galego, dono da quitanda, pulei o balcão e arrastei os sacos de farinha. Uma nuvem de farinha branca se formou rapidamente. O pó branco cobriu a cara do jazzman, dando-lhe um aspecto ainda mais enigmático.

Saí apressado da venda com Miles Davis debaixo do braço. Por alguns instantes achei que o galego corria atrás de mim. Imaginei o infeliz com um porrete nas mãos, atrapalhado com as banhas da barriga saltando sob a camiseta. Dobrei a esquina e atravessei a avenida correndo entre carros. Havia um ônibus saindo do ponto. Pulei sobre seus degraus, mas Miles ficou preso nas extremidades da porta. O motorista apressado apertou um botão e as portas se fecharam. Ficou eu do lado de dentro e Miles do lado de fora, pendurado numa das minhas mãos.

Cheguei em casa um tanto atônito, mas feliz. Eu estava certo de que havia feito a coisa certa. A mulher quis saber o que era aquilo. Disse-lhe sorrindo:

- É Miles !

- Aahh?!?

É preciso deixar claro que a dona não teve a mínima curiosidade ou vontade de dialogar. Foi logo colocando o dedo em riste na minha cara. Mostrava-me panelas vazias. Berrava línguas estranhas e balbuciava coisas como "comida! comida!". Miles Dewey Davis, impassível, olhava a cena com indiferença. De repente, panelas começaram a voar em minha direção. Comecei a ver tudo em câmara lenta. Eram copos, garrafas, o que tivesse pela frente da mulher.

- Ah, sim, as batatas - lembrei.

Mas, naquele momento, não havia mais nada a falar, não falávamos a mesma língua. Ela estava em transe e o mundo acabara de ruir. Miles, que observava tudo com um olhar fixo, não parecia preocupado com batatas.

Lá fomos nós, feito dois anjos imaculados perdidos na noite. Havia um fio de sorriso na minha face. Apesar do despejo, eu ganhara algo em troca. Não sabia bem o quê. Sentia-me bem sem ter para onde ir. Meu amigo emoldurado parecia esboçar um sorriso cínico.

Naquela mesma noite encontrei Tina. Bebia Coca-Cola e comia cachorro-quente com duas amigas numa esquina qualquer da Lapa, a velha zona boêmia do Rio. Ganhei uma salsicha e falei para ela sobre Miles. Não foi preciso nem pedir, ela foi logo dizendo que tinha um lugar perfeito para nós ficarmos.

O ateliê de "Tio Jacques" ficava perto dali, na Rua Mem de Sá. Tio Jacques estava em São Paulo cuidando de uma exposição e, quando se ausentava, costumava deixar a chave do sobrado com Tina. Foi uma festa. Havia uma coleção de velhos LPs sobre uma grande mesa retangular, no canto da sala. Os discos, misturados a tubos de tinta, pincéis e garrafas de whisky e vodka, formavam uma coleção bem eclética. Tina encheu nossos copos e colocou Os oito batutas para tocar.

Tirei um quadro confuso do cavalete e coloquei Miles em seu lugar. Continuou confuso, mas me pareceu bem melhor. Alguém bateu à porta. Era Desirrèe, uma das amigas que acompanhavam Tina horas antes. Desirrèe queria ser artista plástica e na ausência de Tio Jacques freqüentava o ateliê. Com suas botas que subiam até os joelhos começou a acompanhar Tina num balé de evoluções estranhas. Dizia que aquele era o seu mundo. De certa forma, era o mundo de todos nós. A figura de meu amigo era cada vez mais patética, esfolada pelos maus tratos, pelo tempo.

Tina não tinha dado muita atenção à minha aquisição, mas Desirrèe logo compreendeu que Miles estava mal. Chamaram-lhe a atenção justamente os lábios do trompetista. Ela considerou que estavam desfigurados, resolvendo então retocá-los. E pôs-se a mexer em pincéis e tintas. Experimentava misturas, buscava novos tons para o vermelho. Enquanto dançava com Tina, eu observava Desirrèe fazer novos contornos nos lábios do moço. Deu-se por satisfeita quando transformou a boca do músico num repolho psicodélico.

Tina retorcia o corpo ao som saltitante de Pixinguinha que saía da vitrola. Eu bebia goles de vodka e tentava acompanhar o seu difícil bailado. Desirrèe movimentava os braços e a barriga, parecendo simular a dança do ventre. De vez em quando, ela metia o pincel na cara de Miles e olhava para mim como se buscasse a minha aprovação. Segurava na mão esquerda uma garrafa de vodka e na direita um pincel.

Os cabelos do cara, antes esbranquiçados por causa da farinha, ficaram vermelhos após as pinceladas de Desirrèe. Confesso que gostei muito, Miles rejuvenesceu. A bebida queimava o meu estômago, mas Tina insistia que eu dançasse ao som de Itamar Assumpção, aos berros. Desirrèe veio para cima de mim com os tubos de tinta vermelha nas mãos. Com os dedos, dava pinceladas em meus cabelos. E também fiquei de cabelos vermelhos. Tina tirou os óculos escuros que trazia pendurados entre os seios e os enfiou no meu rosto. Meus lábios, igualmente, não foram poupados.

A música muito alta deve ter incomodado alguém. Eu dançava de olhos fechados e girava em torno de mim mesmo quando, de repente, a música parou. Estávamos cercados por policiais surgidos do nada. A princípio, três ou quatro, depois mais outro e mais outro, era um bando deles. Tina e Desirrée já estavam imobilizadas com os braços retorcidos para trás. Logo fizeram o mesmo comigo. Fomos conduzidos em direção à porta de saída, enquanto dois deles ficaram revistando o local. Olhei para trás procurando por Miles, mas desta vez ele me evitou. Esses momentos realmente são muito difíceis. Mas, confesso, esperava uma solidariedade maior por parte dele. Cara estranho esse Miles.

Na delegacia fomos fichados um a um. Um detetive meteu a mão na bolsa de Desirrée e cantou para o escrivão "Desirrée Antunes". Depois, a vez de Tina, "Sebastião Pedroso", e eu por fim. Claro, o fim da noite foi péssimo e todo o dia seguinte também. Fui liberado no final da tarde, eu era um réu primário. Quanto a minhas amigas, por lá ficaram.

Trazia o gosto da morte na boca. Restavam-me uns trocados amarfanhados no bolso, o suficiente para pagar o ônibus, mas bebi um caldo de cana com o dinheiro. Fiz meu caminho de volta a pé. Andei cerca de quatro horas sem parar, mas sem pressa de chegar. Bati à porta e lá estava a mulher. Como sempre, já me esperava. Escancarou a porta e mandou que eu entrasse. Apontou para a mesa, sugerindo que eu sentasse. Nem os óculos escuros nem os meus cabelos vermelhos chamaram-lhe a atenção.

Com aquela cara de poucos amigos, veio em minha direção com uma faca enorme. "Ela vai me sangrar como se um eu fosse um porco", pensei. Mas, não. Colocou o facão em minhas mãos. No buraco debaixo da pia havia um saco. Ela o pegou e o despejou na minha frente, fazendo com que batatas se espalhassem como bolas numa mesa de bilhar. As lentes vagabundas dos óculos escuros de Tina emprestavam aos legumes uma coloração azul violeta. A mulher me encarou com firmeza e sacudiu a cabeça demonstrando impaciência. Resignado, pus-me a descascar batatas.


Manto Costa

http://www.youtube.com/watch?v=BPkBktxxlGA

Um comentário:

  1. Excelente Manto Costa, humor cotidiano, sob um novo angulo, mui loco...

    Mauricio BS
    San Cristobal

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