15 de julho de 2010

Secos & Molhados - Quarenta anos de solidão

Em setembro deste ano, fazem exatos quarenta anos que o português João Ricardo idealizou o grupo Secos & Molhados, que começou com ele sozinho e acabou da mesma forma. A primeira formação do grupo não vingou, mas foi quando João conheceu Ney de Souza Pereira (o Matogrosso), Gerson Conrad e Marcelo Frias, além de outros músicos que davam suporte e também faziam arranjos, que o grupo decolou, em shows e na gravação de seu primeiro disco, que com apenas dois meses de lançado já tinha vendido mais de 300 mil cópias, uma marca até então jamais alcançada na música brasileira em tão pouco tempo. E em 1973, estourava o chamado "disco das cabeças" que ficaria marcado definitivamente na história da MPB, um trabalho verdadeiramente cult. E com suas influências roqueiras, tropicalistas, regionais e até latinas, partem para um segundo disco (1974), que não emplaca como o primeiro, apesar de ser tão bom quanto. Logo depois da gravação desse disco, a chamada "formação clássica" se dissolve no éter. Vamos reproduzir algumas palavras do João sobre o "disco das cabeças":

"Como autor, não poderia estar mais reconfortado. Sempre foi minha peça de resistência, antes mesmo de ser gravado. Todos, ou quase, foram contra a maneira como dirigi musicalmente estas canções. Era outra época onde cobranças para fazer sucesso não eram muito diferentes de hoje, mas me deixaram à vontade para fazer o que realmente queria. Diziam que eu fazia tudo errado. O som não era esse. Sidney Morais, coordenador de produção, foi à única presença da gravadora que teve a sensibilidade de me reafirmar que o som era esse. Não mude nada. É claro que todos contribuíram admiravelmente, mas discordando sempre de mim. Mesmo assim, foi a realização do garoto que forma uma banda sem qualquer componente para gravar suas musicas, estas sim, o centro da questão. Vesti-las foi um grupo, cada um com algumas pérolas definitivas como o contra-baixo de Sangue Latino criando um "riff" do instrumento, absoluto, ou as flautas, ocarinas, de bambu, junto com a percussão de Assim Assado. A única que eu menos gostava, Fala, dei para um arranjador. Passei a gostá-la mais. Há também O Vira que alguém pode achar, por ser português, ter sido o mentor do arranjo folclórico, mas não, pelo que me lembro à sugestão foi da letrista a partir do próprio título que ela deu. Enfim, falar deste disco é com citar outro clichê, desta vez pela boca do meu filho, ao se referir a ele como o seu irmão mais velho".

Quem pensa que o grupo acabou em 74, engana-se redondamente. Em 78 eles ainda fazem um certo sucesso com a canção "Que Fim Levaram Todas As Flores"; em 80 mais um disco; em 88 uma tentativa desesperada, "A Volta do Gato Preto". e praticamente sozinho como no início, João ainda lança "Teatro" (1999) e "Memoria Velha" (2000), deste último a melhor coisa do disco é sua faixa de abertura, o poema "Os portugueses deixam a língua nos trópicos", que vale a pena ser reproduzido aqui.


Um pedaço de pátria livre com minhas veias atlânticas
No mapa mestiço do meu corpo negro ou brasileiro
A mesma face enterrada no chão português da ibéria
E a mesma alma oceânica a caminho dos ventos
A mesma língua por dentro da língua falada nos espaços
Recônditos da alma morena dos antepassados recíprocos
Todos comuns ás virgens defloradas pelos homens sem cor
Que punham lantejoulas no céu de cada ventre tropical
Ao sul das lânguidas praias margens da misteriosa atlântida
Quilhas rasgando os vendavais de cada aventura sem destino
Aí nasceram as bocas astrais para os signos dos deuses
Criando a mitologia dos afogados ao leme dos tempos
Resta essa lusíada chama agora liberta nas plagas continentais
Onde fermenta o sol no sal das obtusas claridades das sombras
Gerando a palavra nos corações misturados nos abismos das raças
Onde as pirâmides assinalam os sarcófagos do meu povo
Povo triturado pelas esferas e os cata-ventos imperdoáveis
Das bruxas que urdiram o maligno feitiço do império
E agora mortas expelem nas marés as fétidas fezes da história
Uma história que é preciso começar outra vez de zero
Um pedaço de pátria livre com essa chama lusíada
Líquida chama nos lábios de um futuro sem abortos
Expressão dos ventres da gestação austral
Ou das pequeninas ilhas dos golfos crioulos
Um beijo na boca do universo um beijo africano
Principalmente africano e brasileiro
Do zero ao êxtase um beijo íngreme na boca
Das líquidas palavras da mesma língua cósmica
Será uma fusão de asas salgadas pelas marés claras
Das praias assinaladas pelas âncoras ancestrais
E a mesma viagem andrógina dos bissexos da mesma pele
Desfraldando as bandeiras miscigenadas pelas lantejoulas
Um pedaço de pátria das pátrias procriadas
No mesmo verbo ardente de lírica melodia
Cantando amanhã as palavras somadas
Pelas gentes que esta língua em si mesmo procria
Meu sangue diluído nos poros do teu ser
Esse meu estar no mundo na tua pele sem cor
Colhendo os brasis nas selvas africanas
E as áfricas semeando no reino dos algarves
Quem será esse filho do grávido futuro
Que a tua boca oferece ao beijo redimido
Fecundado pelos séculos no mesmo chão sem pátria
Das pátrias do meu verbo do teu verbo nascido
Um pedaço uma gota uma única gota
Do teu perfil mestiço projetado nos astros
Singrando mares siderais á procura de rota
Os mares os mesmo mares nunca antes navegados
Que os despojos da história voltem ao restelo
Mas que essa chama livre para sempre viva
Num pedaço de pátria múltipla pátria amada
Feita de mil pedaços da alma do meu povo
Português em macau ou brasileiro em luanda
Africano da bahia ou crioulo europeu
Quando falas eu sei que nasceste de mim
Quando em mim nascias do meu pai do teu pai
Português infeliz nas andanças andadas
Palmilhou cicatrizes no rosto do tempo
E não sabe o que fazer das encruzilhadas
Nem das cruzes que pôs nas vertentes oblíquas
Português sem o gesto da própria mão direita
Decepadas nos becos das entranhas marinhas
(poentes de navalhas em horizontes mortos)
Com a vida esvaída nas correntes submersas
Português carregando os crepúsculos pesados
De uma podre velhice para estrumar a europa
Enforca-te no mar e nos próprios cabelos
Mas não morras deitado na cama da ibéria
Português que furaste os olhos ardentes
Para veres os confins dos confins da aventura
Não desistas agora das auroras urgentes
E volta para casa para nasceres de novo

Por Mario Medella

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