23 de abril de 2012


(postado em abril de 2011)
Uma nova era do rádio

Passados o tempo dos jabás e a ameaça da internet, uma mudança qualitativa e quantitativa se faz notar nas ondas do ‘dial’, que apresentam um crescimento de 10% no número de ouvintes.

Leonardo Lichote

Mais com a discrição de locutor clássico do que com o alarde de FM jovem, de forma lenta e gradual, uma mudança vem se afirmando nas ondas do dial nos últimos anos, como se elas estivessem enfim em sintonia com o século XXI — programas originais, novas linguagens se estabelecendo, ousadia e qualidade na seleção musical com os quais o público já se desacostumara. E, apesar de (quase) silenciosa, ela foi percebida. O Ibope aponta um crescimento contínuo no número de ouvintes —10% desde 2003, uma cifra aparentemente modesta, mas que ganha expressividade quando se pensa que ela se refere a um meio que parecia ultrapassado pelas novas tecnologias. Estatísticas à parte, um levantamento informal com amigos, a observação de conversas nas ruas e nos tweets — e o testemunho de artistas e radialistas — mostra que um público que estava afastado do rádio desde a década de 1990 — não por acaso, o auge da era dos jabás — está voltando a ele. 

Figura presente no rádio desde 1982 (com a lendária Fluminense FM), o DJ Mauricio Valladares, apresentador do “roNca ro Nca” na Oi FM (uma das pontas de lança do atual bom momento), percebe a volta do interesse e a relaciona com outra retomada: — Posso comparar com a percepção que as pessoas têm mostrado do vinil, que é o único suporte que cresceu na década — conta o DJ. — O vinil foi redescoberto porque as pessoas cansaram de ouvir som ruim, não saber o que é uma capa bonita. O rádio passa pelo mesmo processo. Quando chegou a internet, houve o fascínio pela possibilidade de acesso a todas as informações e músicas. Mas esse fascínio tem uma validade, que expira no momento em que você não tem uma luz te dizendo para onde ir, para onde não ir e para onde ir mesmo sabendo que será uma roubada.

É o comunicador o camarada que vai dizer o que você está ouvindo. E só o rádio transporta essa sensação de que, naquele momento, você está incluído num grupo. O cara que ouve meu programa em Porto Alegre se sente irmão gêmeo do cara que está no Alto José do Pinho, em Recife. Outro exemplo: eu odiava samba, mas adorava ouvir o programa do Adelzon Alves. Gostava daquela mágica de ele falar com os motoristas de ônibus, era fisgado pela dinâmica. A internet não vai ter isso nunca. O rádio é algo novo, apesar de muito velho. Vista a princípio como rival, a internet tem papel importantíssimo para a redefinição do rádio.
— Nos anos 1960, a rádio consegue se levantar depois do baque da televisão, para onde migraram os programas humorísticos, os de auditório, as novelas.

E aí vem o ostracismo dos anos 90. E a internet, que foi um susto um pouco menor do que o da TV — avalia Eliana Caruso, presidente da Rádio Roquette Pinto FM. Eduardo Andrews, gerente de programação da MPB FM, concorda: — Foi o empurrão que faltava para as rádios acordarem. Ou elas inovavam no formato e conteúdo ou morriam de vez. Elas decidiram inovar. Hoje, se afirmam reforçando suas marcas pela atuação em diversas frentes, como selo e promoção de shows (a MPB FM seguiu esse caminho e a Oi FM, filha de uma telefônica, já nasceu sob essa égide); apostando na nova música brasileira de uma forma que não se via desde a geração 1980 do rock brasileiro, com Fluminense FM à frente; e explorando as novas ferramentas oferecidas pela internet (novamente ela). Redes sociais como Twitter e Facebook deram nova força ao velho formato de participação de ouvintes. 

A tecnologia ofereceu outras aberturas, como transmissão ao vivo por streaming, programas disponíveis para serem ouvidos em podcasts, vídeos com os bastidores da rádio, informações mais completas sobre os artistas que ocupam a programação... E há ainda outras possibilidades menos óbvias. — O celular virou uma espécie de rádio de pilha — nota Eliana Caruso. Os próprios caminhos da internet a levaram até mais próximo da linguagem do rádio — afinal, a prática de baixar músicas vem perdendo popularidade para a de ouvi-las simplesmente em sites como You-Tube e MySpace. — É uma tendência que vem se consolidando no mercado de música, apriorização do acesso ao conteúdo, no lugar da posse desse conteúdo — diz Flávia da Justa, diretora de  Comunicação de Mercado da Oi, falando da versão on-line da rádio.

Além da tecnologia, fatores econômicos ajudam a entender o renascimento do rádio. A prática abusiva do jabá — com os lucros astronômicos das gravadoras pré-pirataria — homogeneizavam as emissoras, lembram radialistas e programadores. A crise da indústria fonográfica, portanto, abriu espaço para a recuperação que se consolida agora — O jabá devastador trouxe aperda de credibilidade. E a credibilidade num meio de comunicação vem antes da música. Hoje, como as vacas gordas do mercado fonográfico estão raquíticas, a criatividade e a qualidade podem prevalecer — defende Mauricio Valladares.

Os exemplos de criatividade e qualidade no dial hoje são muitos. Mas Pitty — que foi premiada pela Associação Paulista dos Críticos de Arte como revelação na categoria Rádio com opro grama “Segunda-feira sem lei” (rádio Transamérica Pop), que ela apresenta com Beto Bruno e Daniel Weskler — torce para que sejam muitos mais: — Existem programas bem legais, mas ainda são pontos de luz nesse oceano imenso. Mas já considero isso algo muito bom e torço pra que se espalhe. Gosto muito de entrar no carro e ligar o rádio, ficar à mercê do shuffle do DJ — diz Pitty, pondo conceitos da cultura digital e do rádio na mesma frequência. ■

Dez boas razões para correr o dial:

1. A nova música brasileira
● Além de ter ganhado mais espaço na programação normal, a nova geração de artistas
brasileiros tem vitrines como os programas “Faro MPB” (MPB FM, quinta, 20h), “Sangue novo” (Roquette Pinto, sexta, 21h) e “Novo som” (Oi FM, domingo, 19h). — O “Sangue novo” não é de música pop, rock, samba. Mostra como essa geração é diversificada — diz o apresentador Humberto Effe.

2. Alternativos e raridades
● Daniel Weskler, do NX Zero, Pitty e Beto Bruno, do Cachorro Grande (foto), criaram o “Segunda-feira sem lei” (Transamérica Pop, segunda, 21h) para levar ao rádio o que não ouviam lá. Eles mostram raridades e alternativos (brasileiros ou não). — É uma forma de fomentar a cena no Brasil e de informar a molecada sobre o que aconteceu na História do rock — explica Pitty.

3. Sons que cruzam fronteiras
● Música de países como Colômbia, Quênia e Grécia alimentam “Nômade” (Oi FM, 23h) e “Afrotudo” (Roquette Pinto FM, sexta, 20h). O primeiro faz edições sobre o rap ao redor do mundo ou a música mediterrânea. O segundo é dedicado a sons afro: — Trato, sem didatismos, da influência negra espalhada pelo mundo. Aqui o crioulo manda — brinca o apresentador Humberto Araújo.

4. Literatura em meio ao caos
● Há nove anos no dial de Curitiba, “Rádio caos” (Roquette Pinto FM, sexta, 22h) chegou
ao Rio há um ano. Apresentado por Rodrigo Barros e Samuel Lago (foto), com colaboração
de Felipe Hirsch e Mola Jones, o programa emenda jingles, Drummond e Sex Pistols, gerando conexões surpreendentes. — É um programa de ideias, com forte conteúdo literário — define Samuel.

5. A periferia vista de dentro
● A periferia está no centro também no rádio — na mistura do “Conexões urbanas” (Oi FM, sábado, 19h), no funk do “Big mix” (Beat 98, segunda a sexta, 16h) e do “Furacão 2000” (Beat 98, segunda a sexta, 16h) e no rap de “A voz das periferias” (Roquette Pinto FM, segunda a sexta, 13h). — O auditório antigo da rádio enche de moleques — conta MV Bill, que faz “A voz...” com o DJ Roger Flex.

6. Reverberando desde os 1980
● Mauricio Valladares conta que em seu “roNca roNca” (Oi FM, terça, 22h) lançou Paralamas e Legião nos anos 1980 e, em 2010, apresentou Marcelo Jeneci e Tulipa Ruiz antes de eles terem seus CDs. Em meio a esses, Cartola e The Jam. — Meu gosto está ali, mas o programa não é minha vitrola. Sou só um canal para reverberar o que as pessoas querem — afirma o DJ.

7. Na trilha de Chacrinha
● Na madrugada da FM O Dia, Tino Junior cunhou o estilo escrachado que hoje mostra na Beat 98 (segunda a sexta, 10h), com direito a sonoplastia de chicote para atiçar ouvinte assanhada e bordões como “Que isso, fera?”. Anárquico e popular como o velho Abelardo Barbosa: — Chacrinha é referência, como Big Boy e Faustão com seus bordões. Tento passar o que está na rua para o rádio.

8. O rock de hoje e de amanhã
● O novo e o mais novo no mundo do rock estão na mira de “Todo rock” (Oi FM, sábado, 15h), ao lado de clássicos que conversam com as novidades. É ilustrativo o fato de o primeiro programa do ano ter sido sobre os discos que sairão em 2011. O comando é da apresentadora Marcela Machado, com o auxílio luxuoso de José Flávio Jr., Marcelo Ferla e Fábio Massari.

9. Detalhes tão pequenos
● Um clássico. Uma hora de canções de Roberto Carlos, com apresentação de seu filho Dudu Braga. “As canções que você fez pra mim” (Nativa FM, diariamente, 5h) reúne o voyeurismo das histórias de Segundinho sobre a intimidade do pai (ele comenta notícias publicadas sobre o Rei) a um repertório (quase) sempre de altíssimo nível. Vale madrugar de vez em quando para ouvir.

10. Música séria, linguagem leve
● Em vez da pompa, o prazer. Assim são “Quem toca” (Roquette Pinto FM, quinta, 21h), programa instrumental de Leandro Braga, e “Viva-Música! e o mundo dos clássicos” (MEC FM, diariamente, 13h), de Heloisa Fischer. — Vou do jazz à guitarrada — conta Braga. — Dia 15, estreio um programa para jovens, com Victor Araújo e Letícia Novaes, do Letuce — adianta Heloisa.

(Publicado no jornal O GLOBO, em 9 de janeiro de 2011)

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