2 de novembro de 2010

Black Rio


Ao visitar um velho álbum de fotografias, deparo-me com uma foto minha, em plena puberdade, calçando orgulhosamente um sapato multicolorido, três andares, confeccionado artesanalmente pelo Gomes. O cabelo era totalmente black power, a camisa e a calça caíam bem justas. Usei esse visual durante um período na minha vida, o que me valeu na escola o codinome de “Black”. Confesso que de minha parte não havia uma consciência maior sobre o movimento afro-brasileiro. Estávamos no início dos anos 70', e eu era um garoto como outro qualquer.

Procuro buscar em minha memória as minhas primeiras e verdadeiras inserções pelo chamado Black Rio. É complicado porque bebi de tudo um pouco. Mas, mergulhando lá fundo, eis que encontro o meu momento chave.

Lá pelos idos de 1979/80, houve uma noite memorável no Clube Renascença, tradicional reduto tijucano dos afro-descendentes. O auge do movimento soul e do funk dinamite de James Brown já havia ficado para trás, mas, vez por outra, os encontros aconteciam. E o Rena era um dos guardiões da causa, com os seus bailes aos domingos.

A festa bombava quando tinha uma atração especial, algo como a Banda Black Rio, trazendo o saxofonista Oberdan à frente. Aparecia gente de todos os cantos do subúrbio carioca. O baile era daqueles programas certos, não havia nada de melhor para se fazer. E houve um domingo em que apareci por lá e dei de cara com uma pequena faixa, não mais que dois metros de comprimento, sem nenhum capricho gráfico, fixada logo acima da bilheteria: “Tim Maia - Hoje”.

O cantor estava numa maré baixa. Recém-saído da irmandade racional Universo em Desencanto, a quem dedicou dois grandes discos, seu último sucesso havia sido Sossego, de 77. A divulgação pífia do show – ninguém estava sabendo – dava margem à desconfiança da galera: “é mais fácil aparecer o Papa”, dizia um, “puro caô, o cara dá beiço até no Canecão, vai aparecer aqui?”, dizia outro. Na realidade, ninguém deu muito crédito àquele anúncio mambembe lá na porta. Todos estavam mais interessados em papear, beber cerveja e azarar. Para os poucos dançarinos de plantão daquela noite, havia espaço de sobra na quadra, além do telão reproduzindo slides das antigas black nights.

O som rolava e as coisas aconteciam tanto lá dentro como lá fora, na parte externa, próximo ao bar do clube. E foi justamente essa turma do sereno que primeiramente presenciou, lá pelas 10 horas, a chegada de Tim Maia e de seus músicos, que passaram pelo bar, no meio da galera, em direção à quadra. Ninguém entendeu nada, ninguém esperava. Nem mesmo o pessoal da equipe de som. Realmente, havia uma bateria montada no palco fixo da casa, centralizado na quadra. As caixas de som eram da equipe mesmo. Além disso, nada mais havia sido providenciado. A verdade é que nem a diretoria do clube esperava o homem. Foi um corre-corre para montar teclados, pedestais e microfones. O DJ, sem muita convicção, tratou de avisar: “Aí pessoal, daqui a pouco, show com o grande Tim Maia!”.

A turma que já se preparava para ir embora mudou de planos e juntou-se aos que ainda dançavam na pista para aguardar o show. Os rodies estavam com dificuldades de montar o precário equipamento. Foi quando Tim e os músicos da banda Vitória Régia resolveram arregaçar as mangas e eles mesmos concluírem a montagem e passagem do som, tudo ao mesmo tempo.

Com Tim Maia comandando os trabalhos, os agudos e os graves aos poucos foram ficando redondos. Um acorde aqui, um vocal acolá, e Tim mandava abrir ainda mais o volume dos velhos e potentes amplificadores Marshal. E de repente deu início ao show: “Não sei porque você se foi, tantas saudades eu senti...”. Um espetáculo impagável. O síndico estava a fim de cantar e mandou ver. Desfiou todos os seus clássicos, fez vocalizações impensáveis, aprontou um medley só com músicas do Cassiano, deu uns três esporros no baterista – Quero mais marcação! Cadê o prato? Bate assim, porra (gesticulando)!

Já passava, e muito, da meia-noite e Tim ainda dava o melhor de si no palco. O público privilegiado, cantava, dançava e aplaudia. Suado, cansado e feliz, quase 1 hora da manhã, o crooner chamou o Black Rio às falas: “É isso aí rapaziada. Dançar é muito bom, confraternizar é muito bom, beijar na boca é muito bom. Mas, convém estudarmos (pausadamente). O futuro está aí pronto para nos engolir. É a única saída. E olhe lá...”. Daí ele cantou Sossego, deu um tchau, e foi embora.

Valeu Tim.

Manto Costa


p.s. Essa é uma pequena homenagem do Batuque na Cozinha ao Mês da Consciência Negra.

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