2 de novembro de 2010

Nem parece: ele se foi há 3 décadas...

ANGENOR DE OLIVEIRA, o Cartola, nasceu a 11 de outubro de 1908, no Catete, mas aos 11 anos foi levado pela família para a Mangueira, onde aprendeu as artes da macumba e da malandragem ( “No meu tempo, malandro não era bandido: trabalhava pouco, gostava de beber, tocar violão e ganhar presentes das mulheres da vida”). Só que o Mano Elói, do Morro da Serrinha, estivador do cais do porto e pai-de-santo respeitado (sacerdote das religiões afro-brasileiras), freqüentador usual dos terreiros do morro da Mangueira, para lá levou um hábito que faria história no futuro: terminados os cultos religiosos, começavam as rodas de batuque e cantoria, nas quais as mesmas melodias dos “pontos” (cantos sacros) eram cantadas com letras profanas. Pois é, foi isso o que mais tarde passou a ser conhecido como samba. Cartola fundou a Mangueira e compôs sambas tão lindos que o “Brasil oficial” começou a enxergar que o talento daqueles negros da favela podia bem ultrapassar a classificação de “folclore” e ser ouvido nas salas de suas mansões. Poeta, compositor, amante da beleza e das artes, fundador da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, Cartola morreu em 30 de novembro de 1980.

Às vezes, me lembro dele. Muitas vezes. Como é que ele veria esse mundo de hoje, 30 anos após sua morte, a serem completados um dia após o meu aniversário? E ele bem que poderia estar vivo aos 101 anos - hoje não é tão difícil - que o diga Oscar Niemeyer, ainda trabalhando e indo ao comício da Dilma no Teatro Casa Grande.

Mas acho que ele, não, ele não ia gostar... Cartola era um homem íntegro, positivo, transparente, reto como uma flecha. Homem de uma só palavra. E tanto o mundo quanto as pessoas atualmente estão cada dia mais opacas e sinuosas.

Poucas vezes vi alguém com tanta certeza de suas convicções. Quando ele chegava a afirmar algo, era porque a certeza já estava instalada no seu coração. Era uma pessoa extremamente tradicional e moralista (um moralismo bem mais flexível e controvertido que o da “opus dei”). O avô de Cartola, Luís Cipriano Gomes, era o cozinheiro mais importante de cidade de Campos, situada ao norte do Rio de Janeiro. Em 1903, o mestre-cuca foi trazido com a família para a capital, para comandar a cozinha do Senador campista Nilo Peçanha que, três anos depois, foi eleito vice-presidente da República e depois alçou à presidência, onde ficou até 1910.

Aída, filha Aída, filha do cozinheiro, casou-se com o primo Sebastião. Tiveram 10 filhos, entre eles, Cartola, que lembrava da infância como sendo “o pretinho mais bem vestido de Laranjeiras.” Com a morte do avô, a numerosa família Oliveira não suportou a vida cara da Zona Sul e se mudou para a Mangueira, onde o menino de 11 anos conheceu os jovens Carlos Cachaça, Geraldo Pereira, Aluízio Dias, Maçu e cresceu com os sentidos desenvolvidos pela capoeira, a valentia e o batuque dos terreiros.

Cartola não teve filhos – era estéril – mas criou uma penca de gente, parida ou adotada pelas mulheres com quem foi casado, 25 anos com cada uma: Deolinda, dos 17 (1926) aos 42 anos(1951), a juventude inteira, até a morte dela “Desde o dia em que partiste, a saudade morou no meu peito”; e Zica, de 1955 a 1980, até sua própria morte. As duas, cada qual a seu tempo, eram mulheres excepcionais, com aquele perfil submisso de dona de casa, igual à mãe da gente. Referindo-se a elas, dizia: “eu respeito muito a minha mulher”. Respeitar, para ele, era sustentar, apresentar como esposa, agir corretamente diante delas, dar-lhes o lugar de rainha do lar. Isso não quer dizer que, por fora e quando estava sozinho, não mantivesse romances ligeiros com outras “criaturas”, mas tudo muito discreto, na surdina.

Eu não me meto com mulher direita, com mulher virgem, com mulher casada. Não tiro ninguém do caminho certo. Mas, se a mulher já tiver a vida torta, aí ela vem porque quer!”
Quando a mulher queria ir embora, cantava: “se bom pra você for, pode partir, amor; e que sejas feliz, e muito bem feliz
”.

E também era com samba que ele se zangava e ia embora: “Fácil demais fui presa, servi de pasto em sua mesa, mas fique certa que jamais terás o meu amor, porque não tens pudor”. Quando se apaixonava, distinguia a amada: “Misturada entre as pedras preciosas do mundo, com um simples olhar, a você não confundo”. Ou ficava nostálgico: “Queixo-me as rosas, que bobagem as rosas não falam, simplesmente as rosas exalam, o perfume que roubam de ti, ai”.

Aos quarenta e poucos anos, entre um e outro casamento, apaixonou-se perdidamente por uma mulher que não tinha nada a ver com seus anseios de poeta. Menininha, a mulher de Carlos Cachaça, anos depois do fim do romance, descreveu: “A Donária não era mulher para o Cartola, aquilo era um escorpião” Ele acabou abandonado, doente, infeliz: “Dizem que estou desfigurado, com razão estou cansado de pedir a Deus, aos céus, enfim, um amor, onde encontrarei, Senhor?”

Deus atendeu e apareceu a Zica: “Nada mais nos interessa, sermos felizes, contentes. Só nos dois, apenas dois, eternamente”.

Por dar extremo valor à liberdade, Cartola ganhou fama de malandro. Mas, como trabalhou: foi tipógrafo, pedreiro, lavador de carro, responsável por barraca de alimentos da COFAP, contínuo do Ministério da Agricultura e, apesar de ter obra gravada por cantores consagrados desde 1929 (aos 21 anos), só conseguiu gravar o primeiro trabalho solo e ganhar algum dinheiro com música 35 anos depois, aos 66 anos de idade. Em vez de se lamentar, a partir daí, cheio de prazer, trabalhou até a véspera da morte, mesmo frágil e doente. E repetia: “como é bom não precisar dever a ninguém”.

Quando percebeu a velhice chegar e com ela a saúde falhando, cantou com resignação: “Surge a alvorada, folhas a voar, e o inverno do meu tempo começa a brotar, a minar”. Tempos mais tarde, descobriu que tinha câncer e que seu tempo de vida era curto: “Se eu pudesse brigaria, amor; se eu pudesse gritaria, amor: não vou, não quero!

Chamado de “divino” por Lúcio Rangel, amigo e respeitado pelo maestro Heitor Villa-Lobos, Cartola é o único compositor/intérprete brasileiro oriundo de favela, cuja música é avaliada com o mesmo peso de um Tom Jobim, um Chico Buarque, ou seja, os grandes da MPB. Cartola, por seu talento, ultrapassou o rótulo preconceituoso de sambista, que coloca os negros das escolas de samba em outro quadrado, com raríssimas exceções.

Cartola foi meu amigo e gostava de mim, tendo me convidado para escrever a sua biografia, que escrevi com orgulho e muito carinho. Só lamento ser tão jovem na época, pois convivi com um gênio e talvez não captasse a real dimensão do privilégio que vivia.

Interessante, a sorte me permitiu conviver ao mesmo tempo com Cartola e Carlos Drummond de Andrade, os dois contemporâneos, homens de muito siso e pouco riso, de mínimas gargalhadas, de talento incomum, de muita fé e esperança na vida. Um negro e outro branco, de extratos sociais antagônicos, formação cultural diversa, vida completamente oposta, mas cujo talento e grandeza fizeram dos dois pessoas extremamente parecidas: grandes poetas, homens gigantes, jóias preciosas desse grande tesouro que é a diversidade do povo brasileiro. Eu não trocaria esses dois encontros por nada.


Marilia Trindade Barboza
(biógrafa de Cartola, Pixinguinha, Paulo da Portela, Silas de Oliveira, entre outros.)

4 comentários:

  1. Grande Cartola! Esse merece todas as homenagens. Neste artigo, Marília Barboza considera que poderia ter feito melhor, mas é por pura modéstia que, aliás, lhe cai muito bem. Na verdade, sua biografia "Cartola - Os Tempos Idos" é indispensável para compreender a vida e a obra desse gênio.

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  2. Cartola antes de subir, disse:
    "O que está certo, está certo.
    E o que está errado, também está certo".
    Cartola estava certo no seu raciocínio.
    E também está certo o trabalho de Marília sobre o nosso Cartola. Nada vi de errado do que ela disse sobre Cartola, o que também está certo.
    José Alberto Braga

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  3. Ao falar de Cartola, Marilia fala da vida. Não da vida cênica, da vida mitificada, mas da vida real, da vida de quem nasce, cresce, ama, sofre e morre - ainda que, na morte, prove que morrer não é deixar de existir. Exatamente como Cartola.
    Ricardo Mello

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  4. A verdade é que o mundo do samba e do choro está carente de gente compromissada como a Marília. Gente que ama o negócio e procura conhecer a fundo cada coisinha. No fim das contas isso faz toda a diferença!

    E Viva Cartola!

    Grande Marília!
    Um beijo enorme do teu amigo Yuri.

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