19 de novembro de 2010

A fita de Falópio

Depois de um abraço desajeitado, saí andando para um lado e Jarbas Falópio para o outro. De repente, me voltei e disse para ele: “Quando pintar um programa legal, me dê um toque, valeu?”. Depois disso, como era de se esperar, o cara sumiu. Tentei até entrar em contato através do celular que ele deixou comigo, mas a secretária eletrônica insistia em dizer que o tal número não existia. “Como não existe? Esse foi o número que Jarbas Falópio me deu!”, contestei. Mas, tudo bem, ele devia estar confuso.

A verdade é que eu já havia desistido de reencontrá-lo quando ele reapareceu dando sinal de vida. Isso foi há duas semanas. Estava eu nos braços de Morfeu (epa!), ou melhor, dormindo, quando o meu celular tocou às duas da madrugada. Era Falópio, de orelhão, falando animadamente sem parar, como se fosse digamos, três horas da tarde. Eu estava com muito sono e não conseguia entender exatamente o que ele queria. Lembro-me que ele citava versos de Charles Bukowski ao mesmo tempo em que tentava explicar que mais do que poeta ou romancista Bukowski teria sido um grande filósofo. Logo depois já falava dos improvisos de Hermeto Pascoal e apontava Nelson Cavaquinho como o maior músico que passou pela Mangueira. Bem, eu estava com muito sono e tinha dificuldades de acompanhar um raciocínio tão eloquente.

Chegou uma hora em que eu o interpelei, pois o cara estava disposto a falar até o dia clarear. E, cá pra nós, até o dia clarear só com samba. “Mas, e aí gente fina, qual é a boa?” – perguntei. E ele respondeu na bucha: “amanhã, às 9 horas, lá na Praça Tiradentes, no bar da esquina. Foi pra isso que te liguei!”. Então tá.

Era uma sexta-feira, noite quente de verão, os pandeiros cadenciando a boemia na Pedra do Sal e outras rodas mais, e eu naquela dúvida cruel: o que eu iria fazer na Praça Tiradentes com Jarbas Falópio? “Bem, o sujeito me ligou de madrugada, extremamente eufórico, pra me colocar em tal fita. Deve ser coisa muito boa”, pensei. E, é claro, se eu não fosse jamais saberia. Então, parti para o encontro.

O bar estava cheio com suas mesas espalhadas pela calçada, todas ocupadas por casais e grupos de amigos. Pedi uma gelada e fiquei ali pelo balcão olhando o movimento ao redor. Cheguei britânicamente às 9 horas e nem sinal do cidadão. Já estava na segunda cerveja, olhando o relógio de dois em dois minutos, quando se aproximou uma dama.

- Por acaso é você que está esperando o Jarbas Falópio?

- Sim, você o conhece? Como sabe?! – perguntei com espanto.
- Calma querido, ele acabou de me ligar. Cheguei à você porque ele te descreveu muito bem.

Infelizmente, ele não poderá vir. Contratempos. Mas, conforme ele pediu, não deixarei você sozinho por um instante sequer. Claro, se você me permitir.

Chamava-se Shirley Batucada. Era bem mais alta do que eu, aquele corpão moreno, cabelos amarelos, unhas e cílios postiços. Usava botas de cowboy.

- Filho da puta - pensei. Mas, aí já era tarde.
Mesmo contrariado comecei a beber com Shirley. Ela percebeu a minha decepção, mas não deixou a peteca cair. As suas observações sobre as colegas que transitavam na calçada pra lá e pra cá eram fantásticas. Trazia uma experiência de vida que poucos têm e, sem perder o humor, transformava a miséria humana em algo salutar. De certa forma, ela era uma personagem de Bukowski em carne e osso. Após comermos ovos cozidos coloridos, fechamos a conta.

Eu havia dito que precisava ouvir uma boa música, e Shirley Batucada mais uma vez superou todas as expectativas. Levou-me pra Estudantina, que fervia com os casais rodopiando no salão ao som do grupo Chapéu de Bamba. Shirley me chamou pra dançar e eu expliquei que não sabia. “Então é hora de aprender”, disse ela ao mesmo tempo em que me arrastava para pista. Negociei: “Não sem uma cachaça”. Proposta aceita na hora. E, creio eu, aprendi a dançar. Mais do isso, a partir daquela noite comecei a entender coisas que até então eu não entendia.

E para coroar a noite carioca eis que Wilson Moreira é chamado ao palco. Agradeci aos orixás por estar ali. E cantamos juntos e emocionados “abra as asas sobre mim, oh senhora liberdade...”. A noite estava só começando e Jarbas Falópio não fazia a menor falta. Paradoxalmente eu pensava: “Esse é o cara”.

Manto Costa

[Wilson Moreira - Senhora Liberdade]

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